Há 100 dias, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou sobre a emergência de um tipo desconhecido de pneumonia na China.
Daqui a uma semana ou até antes disso, o mundo terá confirmado mais de 2 milhões de casos incidentes e, aproximadamente, 100 mil mortes por COVID-19. Esse é o limite? Não! Essa pandemia é imprevisível e pode ser 3 ou 30 vezes maior.
Apesar dos números atuais de casos parecerem inimagináveis para muitos, até poucos meses atrás, eles representavam apenas a face conhecida e não o total de doentes ou mortos. Portanto, temos ao menos duas faces para a pandemia, uma conhecida e outra desconhecida.
Não custa lembrarmos que o número de suscetíveis que entraram em contato com o vírus e permaneceram assintomáticos ou que adoeceram com a forma leve/moderada da COVID-19, continua e deve permanecer mundialmente desconhecido.
As razões são diversas e incluem falta de acesso oportuno a métodos diagnósticos precisos, decisões técnicas equivocadas e limitados recursos humanos/financeiros. Cenários marcados por massiva (nunca universal) testagem da população ou regiões alvo de pesquisas populacionais específicas para estimar a extensão do problema seguem fora do radar das decisões políticas na maioria dos países.
Embora em menor intensidade, esta realidade é também extensível para as mortes. Isto porque, falhas humanas durante a coleta ou mesmo a região escolhida para a coleta do material biológico podem levar a resultados falso negativos, mesmo quando o PCR, método mais preciso de diagnóstico para COVID-19, é utilizado. Ainda há os óbitos em unidades de saúde para os quais não foi possível coletar amostras biológicas ou situações extremas de mortes sem assistência médica, como tem sido recentemente relatado na Espanha e Equador.
Nada disso está descartado no Brasil, pois além da sua previsível ocorrência em cenários urbanos com estrutura hospitalar beirando a saturação, há situações que podem favorecer a ocorrência de tragédias ainda maiores. As dezenas de Territórios Indígenas (alguns muito distantes dos centros urbanos), sem assistência hospitalar e onde as ações de vigilância em saúde são precárias ou inexistentes, podem tornar a experiência brasileira ainda mais dramática. Notificações de mortes de indígenas vivendo em cidades e os primeiros casos em Terras Indígenas já são uma aterradora realidade na Amazônia.
A epidemia de COVID-19 tem se manifestado em diferentes ritmos e padrões no Brasil. As características continentais do país criaram a possibilidade não só da epidemia se espalhar de forma bastante distinta no território, mas também de uma viciosa retroalimentação de casos entre regiões que podem entrar numa espiral de “importação” de casos (número de casos reduzido e de outra região), transmissões locais (número de casos maior, rastreáveis e que são “produzidos” localmente) e comunitárias (número de casos bem maior e não rastreáveis pelas autoridades sanitárias), caso o seu combate se mostre ineficaz.
Como seria de se esperar, as primeiras dezenas de infecções pelo novo coronavírus (SARS-COV-2) foram registradas nas grandes metrópoles, em especial nas regiões sudeste e sul do país, com casos importados de países como a Itália, duramente castigada. Os EUA também negligenciaram a pandemia e, atualmente, se aproximam da cifra de meio milhão de doentes. As perdas econômicas serão enormes, mas poderão ser compensadas, o que não ocorrerá com o volume de óbitos, muitos dos quais poderiam ter sido evitados se a autoridade máxima do país tivesse agido com presteza e, principalmente, alinhado com a ciência.
No caso brasileiro, preocupações econômicas e políticas se sobrepuseram as massivas recomendações da OMS e de centenas de especialistas a favor do distanciamento social. Assim, em um extremo, algumas autoridades declararam quarentenas prematuramente, sem terem casos confirmados ou transmissão local documentada e, em outro extremo, a quarentena foi declarada tardiamente, amplificando as incertezas e os danos à sociedade.
O Governo Federal, por exemplo, foi pouco ágil no processo de descentralização e expansão de sua capacidade laboratorial e na compra antecipada de testes sorológicos, repetindo o grave erro dos EUA. Ainda não declarou quarentena nacional ou medidas mais firmes e condizentes com os diferentes cenários no Brasil, repassando a responsabilidade aos estados e municípios. A já desgastada liderança do executivo foi se esvaindo nas primeiras semanas da epidemia, fortemente influenciada por posições do Presidente Jair Bolsonaro que nega a eficácia do distanciamento social e insiste no uso da cloroquina, cuja eficácia ainda não foi comprovada. Esse cenário conflituoso no nível Federal tem gerado enorme desgaste entre o executivo e o Ministro da Saúde, que começa a dar sinais de relativização de suas “credenciais técnicas”. Não por acaso, já estuda o relaxamento das medidas de distanciamento social, sugere o uso de máscaras caseiras para supostamente minimizar as infecções e, mais recentemente, admitiu o uso da cloroquina como tratamento alternativo. Quando a política predomina sobre a ciência, tudo é devaneio.
É possível que esse conflituoso comando central do gerenciamento da epidemia, somado ao desinteresse inicial do Governo em bancar parte dos custos imediatos da crise, como o “auxílio emergencial” (autônomos e microempreendedores individuais), pode ter influenciado metrópoles como São Paulo e Manaus a retardarem suas respostas à epidemia e levado parte da população a minimizar ou se arriscar diante da ameaça. Mas, decisões equivocadas geram uma conta elevada.
A cidade de São Paulo continua como o epicentro da epidemia no Brasil, passando de aproximadamente 700 casos notificados no dia 24 de março, para aproximadamente 5 mil em 08 de abril. Na cidade de Manaus, embora o estado do Amazonas tenha decretado quarentena em 21 de março, ocorreram várias autuações a igrejas evangélicas nos dias subsequentes e, até o 6 de abril, comércios seguiam sendo multados por descumprimento das medidas restritivas. Com a liberação do auxílio emergencial e formações de expressivas aglomerações nas agências bancárias o cenário tende a piorar. Diante desse quadro, os casos incidentes em Manaus passaram de menos de 200, no dia 01 de abril, para mais de 800 em apenas uma semana. O estado perdeu seu secretário de saúde e o Governador já admite o colapso da rede hospitalar nos próximos dias, uma tragédia anunciada que pode ser a primeira de uma sequência incerta.
Parece que parte dos brasileiros insiste em não enxergar a face oculta do problema. Precisamos entender que essa epidemia é como uma colossal pirâmide submersa no deserto, com seu ápice visível (casos confirmados), mas que oculta sua enorme base (casos desconhecidos) ou sua real dimensão e seus imprevisíveis perigos.
Portanto, tomar o ápice como referência do tamanho dessa pirâmide é tão enganoso como a crença de que usar máscaras caseiras, medicações de efeito limitado e dispor de leitos insuficientes de UTI são a solução para esse inédito desafio. Mera ilusão, pois tanto a complexa infraestrutura para viabilizar leitos de UTI como a disponibilidade de médicos e enfermeiros especializados tendem rapidamente ao esgotamento, diferentemente da incrível e impiedosa capacidade de multiplicação exponencial (algo próximo ao descontrole) do vírus em populações humanas.
Portanto, o Brasil, em especial suas capitais e cidades com regiões metropolitanas, devem manter-se não apenas firmes, mas endurecer as medidas que visem reduzir e fiscalizar o fluxo humano, tanto aéreo como terrestre, dentro e entre os municípios, evitando desabastecimentos estratégicos e tentativas prematuras de sua suspensão.
Dia após dia, a ciência vem reforçando que a cura medicamentosa ou uma vacina estão fora do alcance universal no curto prazo. Ademais, recorrentemente, o Ministério da Saúde e pesquisadores de diferentes áreas têm ressaltado que não há sinais claros de quando a epidemia alcançará seu nível máximo. Isto porque, a inédita velocidade de sua progressão, depende da combinação de uma série de fatores, como a conhecida eficácia do distanciamento social, a atuação segura e agregadora do Estado, bem como a de um sistema de saúde público e universal revitalizado.
Para finalizar, se não temos ideia do potencial destrutivo do inimigo e reconhecemos nossas limitações, como ousamos enfrentá-lo de forma tão insolente? Estamos preparados para nos responsabilizarmos pelas dezenas ou centenas de milhares de mortes que se avizinham? Vamos insistir na negação do drama humanitário na Itália e a tragédia em curso nos EUA e Espanha? Estamos mesmo dispostos a jogar a responsabilidade por tudo sobre os mais vulneráveis e sobre os trabalhadores de saúde que muito em breve não poderão ser substituídos na mesma velocidade de um respirador ou de um secretário ou ministro da saúde?
Se não quisermos ser coniventes, precisamos concentrar esforços no achatamento da curva e na reorganização e fortalecimento do sistema de saúde. Fique em casa, a economia pode e será recuperada, vidas não!
Jesem Orellana
Epidemiologista do ILMD/FIOCRUZ