quinta-feira, novembro 21, 2024

Artigo de Opinião – Sinais de dias sombrios para a saúde pública de Manaus. Por Jesem Orellana.

Com mais de 100 mil mortes oficialmente notificadas e milhões de infectados pelo novo coronavírus (SARS-COV-2), a humanidade encontra-se mergulhada no que já pode ser considerada a mais agressiva e desastrosa pandemia do século XXI.

Certo mesmo é que os números não param de crescer e que a declaração de fase pós-pandêmica da COVID-19 pela OMS parece não só distante, como se encaminhar para superar os 14 meses da trajetória pandêmica da Influenza H1N1, popularmente conhecida como gripe suína, durante os anos de 2009-2010.

Exemplos contundentes da atual pandemia têm sido reportados em países como a Itália e EUA, além de outros, como o Brasil, que podem seguir percurso semelhante. Os EUA, que há semanas menosprezavam suas consequências, tornaram-se o epicentro da pandemia e acumula mais de meio milhão de casos confirmados, além de ser o recordista mundial em mortes (mais de 20 mil). A dimensão dessa tragédia torna-se ainda mais quando a face desigual da doença emerge. Em Nova York, o número de enterros de corpos não reclamados ou de vítimas pertencentes a famílias com limitados recursos financeiros que se situava em torno de 25 por semana, agora se situa em torno de 25 por dia.

Este é um aspecto central no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo. Manaus, por exemplo, apesar de estar entre as 10 cidades com maior Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, abriga um contingente expressivo e variado de segmentos vulneráveis, tais como imigrantes, pessoas em situação de rua e famílias vivendo em situação de pobreza ou extrema pobreza. São famílias que, em geral, residem em áreas de elevado risco social e sanitário, propícias à rápida expansão da COVID-19.

Entre os dias 05 e 11 de abril, 932 casos foram confirmados na cidade de Manaus. Na semana anterior, entre 29 de março e 04 de abril, esse número foi de 283, representando um pouco mais de 25% do total registrados entre 05 e 11 de abril. Seria desonesto dizer que esse aumento, pelo menos em sua maior parte, é atribuível ao aumento de eventuais testagens nos últimos dias. Certamente há razões menos simplistas e extremamente preocupantes.

Antes mesmo de explorar essas diferenças e o rumo desses números, precisamos lembrar que o atual número de casos confirmados em Manaus (932) remete, na prática, a indivíduos que adoeceram com a forma mais preocupante da COVID-19 ou a parte visível da epidemia. É como se estivéssemos vendo somente o topo (ápice) de uma ameaçadora pirâmide ocultada pela areia do deserto, quando na verdade a sua gigantesca estrutura, especialmente a sua base permanece enganosamente invisível, bem debaixo dos nossos olhos, pronta não só para se revelar em ritmo cada vez maior, como para surpreender a todos com seu inegável poder destrutivo, o mesmo que castiga a Itália, Espanha, EUA e Reino Unido.

É mais provável que esse quantitativo que nesse momento já deve ter ultrapassado a barreira de 1.000 casos em Manaus, seja reflexo da baixa adesão de grande parte da população às medidas restritivas de circulação nas semanas anteriores. Especialmente daqueles que acreditam no mito de que a COVID-19 é só uma “gripezinha”, que só mata “velho” (uma espécie de desprezo pelos mais experimentados) e que uma medicação redentora está ou estará muito em breve disponível em qualquer farmácia ou hospital para supostamente curar os doentes, tal qual como corroborado pelo Presidente, que de maneira irresponsável tem desafiado a ciência, sem qualquer fundamento técnico sólido.

Não podemos esquecer que há também os que acreditam que o uso de máscaras caseiras ou industrializadas, sem poder de filtragem para o novo coronavírus, são suficientes para evitar a contaminação, mesmo tendo pouca ou nenhuma habilidade para usá-las. Não precisa ser um especialista no assunto para notar que boa parte das pessoas usam essas máscaras de forma inadequada, deixando frestas claramente visíveis entre os olhos e o nariz ou entre a orelha e a boca. Isso sem mencionar os que simplesmente abaixam a máscara para falar ou põe as mãos repetidas vezes no rosto para ajustar a posição da instável e improvisada máscara.

Ainda há os que acreditam que chás ou preparados caseiros os tornam imunes à doença e que isso é suficiente para que seu corpo se proteja eficientemente da COVID-19. Em um limite mais extremo, há aqueles que têm pleno conhecimento de todos esses problemas e por puro apego a interesses econômicos defendem o fim dessas medidas restritivas, ludibriando e até mesmo ameaçando quem está ao seu alcance.

O aumento abrupto de casos em Manaus levou o hospital de referência, Delphina Aziz, ao seu limite operacional para casos graves de COVID-19, obrigando as autoridades a buscarem novas alternativas de leitos, em especial em Unidades de Tratamento Intensivo (UTI).

A dimensão dessa crise deve ganhar contornos ainda mais dramáticos quando dezenas de pacientes graves oriundos do interior, incluindo territórios indígenas e ribeirinhos residentes em regiões remotas, começarem a chegar na cidade, ao mesmo tempo que a epidemia for se interiorizando, especialmente nos municípios mais próximos ou nos mais populosos como Parintins, Itacoatiara e Manacapuru. Atualmente, 16 dos 62 municípios amazonenses já têm casos confirmados e os indígenas do Amazonas também começaram a adoecer e a morrer.

Em 20 ou 30 dias, devido a incapacidade do sistema de saúde, as secretarias municipais de saúde começarão a transferir dezenas de casos graves para Manaus. Outro aspecto que reforça a dimensão da crise em Manaus, diz respeito à mortalidade. Entre os períodos 29 de março-4 de abril e de 5-11 de abril, o número de óbitos quintuplicou, passando de 9 para 44 mortes, respectivamente.

Sabemos que os dados de notificação de COVID-19 não representam o total de pessoas que adoeceram e menos ainda o de infectados assintomáticos. Esse raciocínio também é parcialmente extensível ao total de indivíduos que, de fato, foram a óbito com o diagnóstico de COVID-19. Há diferentes níveis de subnotificação para dados de adoecimento e morte e ambos são apenas parcialmente compreendidos. Mas, relativizando tudo isso, podemos sim ver o vulto da progressão rápida da epidemia em Manaus e sinais que apontam para o iminente colapso da atenção hospitalar local.

Um dos ensinamentos mais recentes da pandemia é de que ela cresce em ritmo inicialmente veloz e silencioso. Na medida que seu espalhamento vai aumentando começam a surgir as primeiras dezenas de casos graves e as mortes, sinalizando a instalação da epidemia. Nas etapas seguintes a máscara silenciosa da epidemia cai. Nesse contexto, a velocidade de espalhamento é tamanha que começa a castigar suas vítimas com força intensa de mortalidade, sem qualquer possibilidade de reparo imediato dos prejuízos. Vidas perdidas acumulam-se e o máximo que podemos fazer é evitar que esse crescimento rápido se torne descontrolado e caótico.

Portanto, caso a população de Manaus siga aderindo parcialmente às medidas restritivas de circulação, não será nenhuma surpresa, ver as notificações de COVID-19 saltarem de 925 no dia 11 de abril para mais de 2700 casos no dia 18 de abril. Obviamente que esse total de 2700 casos notificados só será perceptível nas estatísticas oficiais do estado do Amazonas, caso a rede laboratorial consiga absorver, analisar e entregar os resultados de toda a demanda de testagem da semana de forma ágil, evitando os conhecidos atrasos de entrega de resultados e o escancaramento da limitada resposta da rede diagnóstica no país, de forma mais ampla.

O atraso na entrega de resultados para a investigação de infecção pelo novo coronavírus é parte inegável da deficitária estrutura diagnóstica nacional. O estado de São Paulo, um dos mais equipados do país para o diagnóstico da COVID-19, recentemente, acumulou mais de 15 mil resultados pendentes, incluindo dezenas de exames de indivíduos que faleceram.

Para finalizar, temos que lembrar que a pandemia de H1N1 (gripe suína) pode ter matado entre 200 e 500 mil pessoas em todo o mundo, ao longo de aproximadamente 18 meses. A COVID-19, em apenas 4 meses, sem qualquer tipo de correção para casos que deixaram de ser reconhecidos pelos sistemas de saúde e sem ter atingido o seu nível máximo, já matou mais de 100 mil pessoas em todo o mundo.

A população de Manaus precisa entender que a epidemia de COVID-19 acaba de entrar na fase de aceleração rápida e que a próxima etapa é a caótica aceleração descontrolada, a mesma que fez Espanha e  Equador mostrarem ao mundo que seus pacientes estavam morrendo em casa sem assistência médica, que fez os médicos italianos escolherem quem morreria ou não e que também obrigou Nova York a enterrar seus mortos em valas comuns.

Não foi em vão que o Ministro Mandetta anunciou o envio de mais profissionais de saúde para Manaus e a necessidade da construção de um hospital de campanha em Manaus, embora não se tenha data de início e fim para a obra. Não estamos conseguindo chegar perto da façanha alcançada pelos chineses em sua quarentena; será que conseguiremos estruturar, em tempo recorde, um hospital de campanha? Será um erro gravíssimo esquecermos de que esse tipo de hospital está previsto para localidades próximas do colapso e com infraestrutura insuficiente para lidar com a crise ou que ele será a solução dela. Portanto, não devemos mais duvidar do caos e sim tentar evitá-lo, a todo custo. Também devemos lembrar que hospitais não funcionam sem profissionais de saúde especializados e que sua construção, em cenário de caos, pode ser como tentar apagar um grande incêndio com meia dúzia de borrifadores.

Do ponto de vista econômico, para muitos analistas internacionais, a pandemia de COVID-19 pode se tornar um dos maiores desafios globais dos últimos 100 anos, com prejuízos de trilhões de dólares e uma recessão econômica que pode se arrastar por anos e aprofundar desigualdades, sobretudo em metrópoles como Manaus. Mas, esta não deve ser a maior preocupação e sim as vidas que estão sendo perdidas, tanto de cidadãos comuns como de profissionais de saúde, recursos críticos e inegociáveis, diferente de dívidas e recessão.

Jesem Orellana

Epidemiologista do ILMD/FIOCRUZ


  • Imagem: Engin Akyurt.

 

 

 

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