Na Amazônia brasileira, os estados mais afetados com casos de coronavírus (covid19) são Amazonas, Pará e Roraima, locais onde vive parte expressiva dos grupos indígenas no Brasil.
De acordo com o último censo nacional, realizado em 2010, podemos afirmar com segurança que hoje temos mais de 1.000.000 de indígenas vivendo no país, representando mais de 300 grupos étnicos, falantes de mais de 200 línguas e vivendo em diferentes estágios de contato com a sociedade envolvente.
No início do mês de abril, foi confirmado o primeiro caso de coronavírus em uma jovem indígena da etnia Kokama, no município de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas. A jovem é agente indígena de saúde no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Solimões. E de cordo com informações oficiais ela se recuperou integralmente e sem sequelas. Entretanto, em dez dias, o número de casos confirmados em indígenas subiu para nove, incluindo cinco prováveis contatos da jovem Kokama, um caso no DSEI Manaus, um caso no DSEI Parintins e um adolescente de 15 anos da etnia Yanomami, no estado de Roraima.
Além dos casos acima informados, haviam sido confirmados dois óbitos devido ao covid19 entre indígenas no Brasil. O primeiro em uma mulher de 87 anos da etnia Borari, que vivia em Alter do Chão, em Santarém-PA; e o segundo em um homem do povo Mura, de 55 anos, residente no município de Itacoatiara, no Amazonas. Todavia, como ambos viviam fora de terras indígenas – sendo, portanto, considerados como indígenas não aldeados – não foram contabilizados nas estatísticas oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS).
Vamos nos deter brevemente no caso do jovem Yanomami Alvanei Xirixana. Segundo depoimentos de profissionais de saúde, depois de sofrer por alguns dias com sintomas sugestivos de covid19, Alvanei foi encaminhado para atendimento na rede SUS e passou pelo Hospital de Alto Alegre, de onde transferido com suspeita de meningite para a Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) do DSEI Leste de Roraima, já em Boa Vista-RR.
Entre um atendimento médico básico e uma consulta especializada, o jovem teve algumas interações com o serviço de saúde e contato com diversos profissionais até ser internado na unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Geral de Roraima (HGR), em 03/04/2020.
Após seis dias de luta contra as complicações clínicas provocadas pelo novo coronavírus, somadas ao retardo no diagnóstico e a não oferta de tratamento adequado, em momento oportuno, o jovem faleceu na noite de 09/04/2020 aos 15 anos. No dia (13/04/2020), as estatísticas oficiais da Sesai já somam 3 vítimas fatais em terras indígenas, sem considerar o problema da subnotificação de casos e óbitos, assumido publicamente pelo Ministério da Saúde, em cadeia nacional.
O que revela este triste episódio?
Existe alguns pontos importantes que podem culminar no agravamento e expansão de novos casos de coronavírus. O primeiro é o posicionamento do governo federal que vem fazendo repetidos pronunciamentos que afrontam os direitos dos povos indígenas.
O presidente da república encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 191/2020 que prevê a regularização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas, sem consulta prévia aos povos indígenas e suas associações, violando assim as recomendações da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, da qual o Brasil é signatário.
Em sintonia com os artigos 231 e 232 da Constituição Brasileira, a Convenção nº 169 reconhece o direito dos povos indígenas à terra e aos recursos naturais, à não-discriminação e a viverem e se desenvolverem de maneira diferenciada, segundo seus costumes.
As consequências sociais, ambientais e para saúde das populações nativas da corrida do ouro foram terríveis, naquela época, e não serão diferentes hoje. Devastação de largas áreas de floresta nativa, ameaça a inúmeras espécies da fauna e da flora local, contaminação dos rios, dos peixes, das pessoas e do todo ecossistema amazônico pelo mercúrio utilizado nos garimpos, além da disseminação de toda sorte de moléstias infectocontagiosas transmitidas pelo contato, incluindo o novo coronavírus.
Com a estratégia de confinamento, cientificamente embasada e adotada pela sociedade e com as recomendações de trabalho em sistema de home office, a frágil estrutura de vigilância ambiental existente no Brasil sofrerá profundos impactos.
Ações de fiscalização de territórios, assim como multas e apreensões, além da remoção de invasores de territórios tradicionais poderão ser interrompidas, abrindo as fronteiras para garimpeiros, madeireiros, grileiros e todo tipo de pessoa interessada em explorar a floresta e seus precisos recursos naturais.
Consciente da magnitude das ameaças que estão por vir e de suas responsabilidades institucionais, no último dia 02/04/2020, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou uma série de ações ao Poder Executivo, dentre as quais destacam-se:
– a inclusão dos povos indígenas no grupo prioritário de vacinação contra influenza, o fornecimento de alimentos e produtos de higiene, a descentralização de recursos e de licitações para aquisição de material de combate e prevenção à nova doença, assim como a distribuição de insumos laboratoriais e testes para diagnóstico.
Na nota, o MPF adverte ainda que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) deve implementar imediatamente medidas de proteção territorial em todas as terras indígenas, independente da situação fundiária, de modo a impedir a entrada e/ou retirar invasores, especialmente garimpeiros e madeireiros. A medida visa prevenir o contágio dos indígenas pelo novo coronavírus.
Vale lembrar ainda que parte expressiva das famílias indígenas estão nos registros do Cadastro Único do governo federal (CadÚnico) e, portanto, são beneficiárias do programa bolsa família (PBF). Em linhas gerais, pode-se dizer que o PBF constitui a única fonte de renda de muitas dessas famílias. Renda que é utilizada para a aquisição de alimentos e utensílios para garantir a subsistência dessas pessoas nas comunidades.
Com o anúncio do auxílio emergencial de R$600,00 para famílias carentes, por parte do governo, é possível que o número de famílias indígenas no CadÚnico aumente e com isso se intensifique o fluxo de indígenas para os municípios em busca do benefício. Por um lado, esse fenômeno pode ampliar o acesso de famílias indígenas à renda e a outros benefícios sociais, por outro, pode aumentar exponencialmente as chances de exposição ao novo coronovavírus e o consequente contágio e adoecimento.
Afinal, a história nos ensina que epidemias causadas por micro-organismos têm consequências catastróficas para povos de origem ancestral.
Diante do exposto, é imprescindível que as autoridades brasileiras passem a considerar os povos indígenas como grupo vulnerável ao novo coronavírus e que se estabeleçam, de forma emergencial, critérios claros para o enfrentamento da doença nos milhares de aldeias indígenas existentes no país.
O plano de contingência deve conter ações imediatas para suprir as demandas emergenciais da população afetada e ações estruturantes para afiançar que o Brasil vai cumprir a agenda 2030 e atingir os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), notadamente, o ODS 10 que prega a redução das desigualdades e o ODS 16 que versa sobre paz, justiça e instituições eficazes.
Por fim, é de vital importância que a sociedade brasileira assim como a comunidade internacional sejam sensibilizadas para este problema e apoiem os povos indígenas na luta contra a invasão de seus territórios tradicionais, contra o garimpo, contra toda forma de violação dos seus direitos e contra o avanço da epidemia de covid19.
Paulo Cesar Basta
Médico e Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
- Imagem: Divulgação.
- Fonte: Informe / Ensp- http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48665