quinta-feira, novembro 21, 2024

Artigo – As epidemias de covid-19 no brasil, desigualdades, o caos, e o inimaginável combustível da crise. Por Jesem Orellana.

Há décadas, gêneros cinematográficos de drama ou terror, inundam o imaginário da humanidade com produções retratando graves crises relacionadas à saúde. Mas, essas produções, costumam focalizar problemas específicos, como os de saúde mental ou física. E o que isso tem a ver com a pandemia de COVID-19? Muito, já que esta pandemia leva a variados problemas, seja como gatilho (gota d’água que faltava) seja como ponto inicial dessas manifestações. Portanto, o filme deixa a ficção e torna-se uma aterradora realidade!

Problemas de saúde mental, ansiedades como transtorno de pânico, fobia de contaminação com o novo coronavírus (SARS-COV-2) ou quadros induzidos pelo uso abusivo de drogas lícitas (álcool, cigarro, cafeína e medicações controladas) são exemplos de suas possíveis consequências e permanecem como a sombra pouco perceptível da pandemia.

Cabe lembrar que situações de medo e ansiedade podem levar a problemas como compulsão alimentar, especialmente nas pessoas que já apresentavam excesso de peso ou obesidade. Há também quadros depressivos com diferentes graus de severidade, surtos psicóticos em pessoas com transtornos mentais graves (Esquizofrenia ou Transtorno Bipolar, p.e.) ou, em seu limite mais extremo, tentativas ou suicídios consumados.

No que se refere à saúde física, o progressivo agravamento da epidemia no Brasil deve aumentar abruptamente os episódios de infarto agudo do miocárdio, seja por problemas relacionados ao limitado acesso aos serviços de saúde em tempos de pandemia ou como consequência direta da COVID-19.

Não podemos omitir desta lista os acidentes domésticos que tendem a aumentar, sobretudo em crianças e responsáveis pelo preparo ou armazenamento de alimentos nos domicílios. Há ainda os casos de violência doméstica, com as marcas de sofrimento nas suas principais vítimas: mulheres, crianças e idosos. Provavelmente, teremos redução nos homicídios e acidentes de trânsito durante a epidemia no Brasil, mas não podemos dizer o mesmo sobre os casos de estupros de vulneráveis ou de feminicídio, principalmente aqueles cuja ocorrência se dá no domicílio.

As consequências sociais são enormes, abrangem desde o aumento acentuado do desemprego até a contínua deterioração das condições da vida de famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. Fatores que conjuntamente devem agravar a insegurança alimentar e a fome, bem como aprofundar a histórica desigualdade social.

Nos EUA, as desigualdades sociais aumentaram sensivelmente no contexto urbano entre 1970 e 2016. Não é difícil prever que o aumento histórico do desemprego, como consequência da grave recessão econômica, que já assola a nação mais rica do planeta, irá aprofundar ainda mais esse preocupante cenário.

No Brasil, com milhões de vulneráveis, incluindo indígenas, imigrantes, pessoas em situação de rua e famílias vivendo na pobreza ou extrema pobreza, geralmente em áreas de alto risco sociosanitário, a expansão da COVID-19 pode ter um efeito ainda mais deletério.

Cabe ressaltar que na região Norte, além do expressivo número de famílias residindo em municípios, sem estrutura de saúde para lidar com a epidemia de COVID-19, há ainda as populações indígenas vivendo dentro e fora de seus territórios, as quais começam a adoecer e a morrer. Já são mais de 20 casos de COVID-19 confirmados, três mortes e, possivelmente, centenas de indígenas infectados, adicionando gravidade ao já sombrio contexto.

Outra consequência que pode aprofundar as desigualdades diz respeito ao possível prejuízo que jovens de escolas públicas, sem acesso de qualidade ou contínuo às tecnologias digitais podem ter na disputa por vagas nas Universidades. Seria desonesto supormos que jovens pobres “competiriam” em condições de igualdade, em relação aos demais, para a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

A desigualdade também atinge trabalhadores de saúde, especialmente àqueles que historicamente são colocados à sombra dos demais. Técnicos e auxiliares de Enfermagem, Auxiliares/Atendentes de Nutrição e Dietética, Técnicos em Radiologia, assim como o pessoal de apoio a limpeza/conservação seriam alguns exemplos de grupos provavelmente expostos a cargas virais mais acentuadas, pois têm menor acesso a Equipamentos de Proteção individual (EPI).

Recentemente, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) anunciou que milhares de Técnicos e auxiliares de Enfermagem estão ou foram afastados de suas funções, por ser um caso suspeito ou confirmado de COVID-19. Assim como os demais trabalhadores de saúde, esses profissionais não podem ser substituídos na mesma velocidade que um respirador ou uma máscara descartável (ambos já escassos), especialmente os que adoecem gravemente ou morrem. Somente entre os profissionais de Enfermagem já há 30 mortos no país.

Portanto, ao contrário do que se pensava, de que o novo coronavírus e suas consequências iriam afetar pobres e ricos de forma democrática ou “igualitária”, a cada dia vai ficando mais claro que se trata apenas de mais um mito, tal qual o da Cloroquina como medicamento que levaria a cura.

O Brasil é um país-continente que, aparentemente, só tem uma curva epidêmica. Mas, na realidade, tem centenas de curvas, já que os primeiros registros do novo coronavírus ocorreram em momentos distintos nas mais diferentes regiões do país e porque, são particularmente influenciados pelas diretrizes municipais.

A situação de Manaus é dramática. Autoridades admitem a superlotação de seus principais hospitais e a limitada capacidade de testagem dos pacientes, inclusive dos que foram a óbito. Corpos de vítimas que faleceram devido a COVID-19 têm superlotado corredores, ao lado de outros pacientes vivos. Ademais, a chegada de médicos e enfermeiros de outras regiões do país em Manaus são indícios da situação crítica da cidade. Fortaleza, capital do Ceará, já tem fila de espera por leitos em UTI e a cidade do RJ está com seus quatro principais sem vagas na UTI. São Paulo também se aproxima do caos, já que sua enorme capacidade hospitalar pode estar próxima da saturação e as mortes começam a atingir níveis médios de 50 por dia, excluindo as centenas de mortes que seguem em investigação para COVID-19.

A epidemia avança e cresce no mundo. O Brasil e seus municípios não são exceções. Não há vacina nem medicamento para interromper essa trajetória no curto prazo. Assim, só o isolamento social pode salvar vidas e reduzir os danos econômicos e sociais que tendem a se acumular.

Ao que parece, a dramática situação dos EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido, não sensibilizou parte da classe política brasileira, em especial o Presidente Jair Bolsonaro e seus milhões de simpatizantes que insistem em desacreditar a ciência, negando a eficácia do isolamento social. Não seria de se esperar, mas este parece ser o principal combustível da crise no Brasil, regado pela epidemia da desinformação, tão ou mais danosa do que a da COVID-19.

Brasileiros começam a perceber a gravidade da situação após adoecerem e, principalmente, quando perdem um parente ou amigo próximo.

Será mesmo a angustiante falta de ar ou a morte de nossos entes queridos que nos ensinarão a distinguir ficção cinematográfica da dura realidade engendrada pela pandemia de COVID-19?

Embora essa tragédia seja palpável em alguns lugares do Brasil, ainda podemos minimizar seus numerosos impactos. Muitos flexibilizarão quarentenas e terão que voltar atrás. Não deixemos que isso aconteça, poupemos mais prejuízos, sobretudo de vidas e de traumas ou sequelas que podem durar toda a vida!

Jesem Orellana

Epidemiologista do ILMD/FIOCRUZ


  • Imagem: GETTY IMAGES.

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