sexta-feira, novembro 22, 2024

“Agora é Lei” Vítimas de crimes sexuais no decorrer do processo penal serão atendidas por profissionais mulheres.

O Senado aprovou nesta quarta-feira (9) projeto que garante atendimento especializado às vítimas de crimes sexuais durante a denúncia e no decorrer do processo penal. O PL 5.117/2020, do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), teve parecer favorável da senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), com emendas.

O projeto, que segue para análise da Câmara dos Deputados, faz dois acréscimos ao Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 1941). O primeiro reproduz o artigo 10-A da Lei Maria da Penha, estabelecendo que o atendimento policial e pericial das vítimas de crimes contra a dignidade sexual seja feito por profissionais capacitados, preferencialmente mulheres. Rose de Freitas acrescentou que a inquirição da vítima na fase do inquérito deverá ser intermediada por profissional especializado, especialmente designado pela autoridade policial.

“É de suma importância que, mesmo com séculos de atraso, nosso sistema de Justiça fique livre da estrutura machista”, destaca Contarato na justificação do projeto.

A segunda mudança na legislação penal estabelece diretrizes nos casos de inquirição de vítimas e testemunhas de crimes contra a dignidade sexual, a fim de orientar o comportamento de agentes públicos. Essas diretrizes são: salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional do depoente; garantia de que o ofendido e as testemunhas não tenham contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas, exceto no caso de decisão devidamente fundamentada quando a medida for indispensável à elucidação dos fatos, ouvidos o ofendido e o Ministério Público; e garantia de que, em nenhuma hipótese, o ofendido será revitimizado.

Para isso, o texto estabelece regras para a inquirição, que deverá ser feita em recinto especialmente projetado para esse fim, com equipamentos próprios e adequados à situação da vítima ou da testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida. Quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado, especialmente designado pela autoridade judiciária. Além disso, o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, e a gravação deverá integrar o inquérito.

Rose de Freitas incluiu no texto a vedação, durante a inquirição, de perguntas sobre o comportamento sexual prévio da vítima de crimes sexuais ou de testemunhas.

A relatora destacou que a revitimização de mulheres que sofrem violência sexual infelizmente ainda é uma prática bastante comum no Brasil. Nessas situações, segundo Rose de Freitas, para eximir o agressor de responsabilidade e culpabilizar a vítima, parte-se da premissa de que a violência sexual somente ocorreu devido ao comportamento prévio da mulher, pelo modo como se vestia, falava ou se comportava.

“É inconcebível que atualmente argumentos dessa natureza continuem sendo utilizados para defender agressores sexuais. É crucial que se entenda que a prática de qualquer ato sexual sem expressa anuência da vítima configura crime. É preciso que se entenda que manter relações sexuais com pessoa que não tem discernimento para a prática do ato é estupro. Enfim, é necessário compreender que não é não”, afirma a relatora.

Rose de Freitas citou dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, segundo os quais foram registrados 53.726 casos de estupro e de tentativa de estupro de mulheres em 2018, número que representa em torno de 147 casos por dia. “Para esse cenário de tamanha violência, é imprescindível um aparato processual que impeça, ao menos, a revitimização das mulheres dentro do nosso sistema de Justiça criminal”, declara ela.

Casos

Na justificativa ao projeto, Contarato destacou como emblemático da revitimização da mulher o recente caso da jovem catarinense Mariana Ferrer, vítima de estupro. Vídeo divulgado pela imprensa no início de novembro mostra trechos da audiência em que a jovem aparece chorando, humilhada pelo advogado de defesa do acusado, que expôs o “comportamento social” da blogueira ao exibir fotos dela, tiradas antes do crime, com o que chamou de “poses ginecológicas”. O advogado Cláudio Gastão também afirmou que “não gostaria de ter uma filha do nível de Mariana”. Palavras proferidas diante do juiz e do promotor de Justiça, que não teriam expressado nenhuma reação de censura diante dessa conduta.

“As palavras do advogado e a omissão dos agentes públicos são tão estarrecedoras que ofendem não só a vítima, mas todas as mulheres brasileiras. Não é por acaso que esse foi o fato mais comentado e noticiado da semana. Atitudes de agentes públicos como as do promotor e do juiz são entraves recorrentes para que as mulheres denunciem crimes contra a dignidade sexual, em especial o crime de estupro”, ressalta Contarato.

Culpa

O senador menciona dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2016 que mostram que 43% dos brasileiros do sexo masculino com 16 anos ou mais acreditavam que “mulheres que não se dão ao respeito são estupradas”.

“É de se destacar que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, o que indica que os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema que vitima milhares de pessoas anualmente”, afirma o senador.

No caso brasileiro, a última pesquisa nacional de vitimização estimou que apenas cerca de 7,5% das vítimas de violência sexual notificam a polícia. Os motivos para a baixa notificação são os mesmos em diferentes países: medo de retaliação por parte do agressor (geralmente conhecido), medo do julgamento a que a vítima será exposta após a denúncia, descrédito nas instituições de Justiça e segurança pública, entre outros.

Direito humano

Na apresentação de seu relatório, Rose de Freitas correlacionou a importância do projeto com a celebração, nesta quinta-feira, do Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado anualmente em 10 de dezembro. Ela reiterou as condições desrespeitosas a que as mulheres muitas vezes são submetidas quando buscam defender sua dignidade.

— Nos novos tempos que vivemos, não há como se omitir de posicionamentos que hoje assegurem a dignidade, que é, sobretudo um direito humano, que trata com respeito e dignidade a condição humana.

Fabiano Contarato, ao agradecer a sensibilidade da relatora, cobrou o devido valor à palavra da vítima e lembrou que a “revitimização” de Mariana Ferrer não foi um fato isolado na Justiça brasileira.

— Na década de 70, no assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, que era o autor, o advogado questionava a vida pessoal da vítima, como se estivesse atribuindo a ela responsabilização, e intitulando ali uma tese da chamada “legítima defesa da honra”, instituto que até nem existe no direito penal brasileiro — lembrou.


  • Fonte: Agência Senado
  • Imagem: Divulgação 

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