Sobre a morte em duas pandemias, a Gripe Espanhola (1918-1920) e a Covid-19 (2020), no contexto brasileiro, apresentam situações vivenciadas parecidas.
As duas pandemias desvelam as desigualdades sociais na morte, a negligência sanitária do Governo Federal, subnotificação dos casos, fragilidade dos serviços de saúde, suspensão dos ritos fúnebres e desestruturação do cotidiano. A gripe espanhola foi mais letal para a população jovem e os jornais eram o espaço privilegiados de informação. Os idosos são os que mais morrem por Covid-19. As plataformas digitais são simultaneamente espaços que propagam notícias falsas, análises de especialistas e narrativas que apostam na resistência, solidariedade e sensibilidade diante da vida e da morte.
As duas pandemias apontaram como principais medidas o isolamento das pessoas que estão morrendo em hospitais, os avanços na medicina no controle de doenças e a medicalização da morte que culminam em dois processos complementares.
Por outro lado, a morte passou a ser banida da experiência cotidiana e foi retirada da experiência vivida em comunidade. Entretanto, em época de pandemias, a sociedade enfrenta crises sanitárias e mortes em massa. E a principal forma de “naturalização da morte”, se dá pelo processo de quantificação dos mortos.
Ambas pandemias vitimaram milhares de pessoas, especialmente os setores mais pobres da população, houve também a suspensão de cerimônias fúnebres, adoção de isolamento social e paralisação de atividades produtivas. Nas duas, ocorreram intenso debate público sobre a doença, a morte, as formas de contaminação e as medidas governamentais adotadas.
Sobre a gripe espanhola
Em 1918, no front da Primeira Guerra Mundial, soldados começaram a ser vitimados por uma doença até então desconhecida. Foi denominada de “Gripe Espanhola”, e recebeu este nome porque foram os jornais da Espanha, país neutro na guerra, que começaram a divulgar o surto que estava vitimando combatentes. Nos países diretamente envolvidos no conflito, notícias foram censuradas para não aterrorizar as tropas. Foi considerada a maior epidemia da história.
Há suspeitas que os primeiros casos ocorreram no estado do Kansas, Estados Unidos, e se espraiaram pela Europa por soldados estadunidenses. Em poucos meses, a doença alcançou várias partes do mundo, atingindo além da América, a África, Ásia, Oceania e Europa. Só algumas ilhas do Pacífico, Nova Guiné e Santa Helena não foram atingidas. Apesar das dificuldades de precisão dos números, cálculos modestos apontam que a gripe matou 20 milhões de pessoas em todo o mundo
Quando as primeiras notícias sobre a gripe chegaram ao Brasil, foram tratadas “com descaso e em tom pilhérico, até mesmo em tom de pseudocientificidade ilustrando um estranho sentimento de imunidade face à doença”. Apesar dos esforços da comunidade médica e de pesquisadores da época, havia desconhecimento sobre a doença, cujo contágio era acelerado e com alta incidência de letalidade.
Nessa época em que não existia rádio e nem televisão, o jornal impresso era o principal veículo de comunicação, fórum privilegiado de discussão pública sobre a “espanhola”. Os jornais registravam as cenas do cotidiano alterados pela pandemia, traziam estatísticas sobre os contaminados e mortos, apresentavam o debate da comunidade médica e das diferentes forças políticas.
“Morte em massa”, “mar de insepultos”, “mortes a centenas”, “espetáculo macabro” são alguns dos termos usados para falar da mortalidade causada pela gripe espanhola.
Num cenário de morte em massa, todos os elementos dos ritos de passagens foram suspensos e foi abolida a palavra “morte” personalizada. A pandemia desmascarou a morte, diz o autor, sendo a tal ponto “coletiva, anônima e repulsiva” quando se perde as “liturgias seculares que até ali lhe conferiam nas provações, dignidade, segurança e identidade” (Delumeau, 2009, p. 181). O autor destaca que a interrupção brutal das atividades cotidianas, o silêncio das cidades, a solidão imposta aos doentes, o anonimato da morte e a suspensão dos ritos coletivos impossibilitam a concepção de projeto futuros e as pessoas viram-se presas ao cotidiano em franca desestruturação, abalando indivíduos e coletividades que atravessam esse tipo de catástrofe.
O drama dos cadáveres insepultos deixava à mostra que os serviços funerários entraram em colapso. Os corpos foram deixados nas ruas, não havia coveiros ou caixões suficientes para os sepultamentos. Foram abertas valas comuns e era grande a fila de cadáveres para serem enterrados. Os cemitérios passaram a funcionar à noite e carpinteiros foram contratados pela prefeitura para construírem caixões. Não eram permitidas aglomerações e os velórios, cortejos e sepultamentos foram modificados.(Gripe espanhola)
Na pandemia da Covid-19, os ritos estão também restritos ou suspensos. Observamos enterros em massa, covas abertas por escavadeiras, caixões empilhados e a despersonalização que acompanha as atualizações epidemiológicas.
Covid-19
Mais de cem anos depois da “gripe espanhola”, outra pandemia começa a grassar o mundo: a Covid-19. No final de 2019, foi constatado que pessoas estavam adoecendo e morrendo vitimadas por um novo vírus na província de Wuhan, China. Apesar das fortes medidas de contenção tomadas pelo governo chinês, em poucos meses a doença se espalhou pelo mundo. No início de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o coronavírus como uma pandemia, alertando os governos para tomarem medidas urgentes.
O grande desafio da Covid-19 é a capacidade dos sistemas de saúde suportarem o rápido aumento de casos graves, tendo em vista os altos índices de contágio. No Brasil, os primeiros casos suspeitos de Covid-19 foram noticiados em fevereiro. Passados pouco mais de quatro meses do dia 17 de março, quando foi confirmada a primeira morte pela doença, temos mais de 70 mil mortes por Covid-19 no Brasil, com o agravante da notória subnotificação. Além da lotação rápida de leitos de UTI e as medidas emergenciais de construção de hospitais de campanha, os necrotérios e cemitérios das cidades mais afetadas colapsam. A escalada da pandemia é atualizada diariamente em todos os canais de comunicação. Os números têm um efeito central na composição da crise sanitária mundial, com casos confirmados em todos os continentes, como informam os gráficos da OMS
A cobertura epidemiológica, esperada em qualquer pandemia, na Covid-19 reativou a noção de grupo de risco (hipertensos, diabéticos, obesos e fumantes), tão presentes na epidemia de hiv/aids nos anos 1980. O manejo dos números localiza os idosos, especialmente os que têm comorbidades, como os que mais morrem nessa pandemia. Como expõem os autores, falar em idosos e grupos de risco, noticiados, pautados cotidianamente como forma enfrentar a pandemia, apresenta-se como “justificação moral-científica de que as mortes desses indivíduos são esperadas, previsíveis e, portanto, podem ser naturalizadas.” (Matta et al., 2020). Os autores problematizam essa “naturalização da morte” e alertam para a dimensão injusta que se desenha: idosos pobres, pouco escolarizados, são vidas dispensáveis.
A onda de respostas da comunidade acadêmica em todos os países afetados gerou volumosa publicação em pouco tempo. Para nossa discussão sobre essa pandemia, trazemos autoras(es) de diferentes áreas de conhecimento, muitos da saúde, que tentam relatar, com apoio em números, previsões de incidência da doença e morte em populações mais vulneráveis. Nas narrativas sobre a morte por Covid-19, dos textos selecionados, destacamos sua sombria conexão com a política. Em narrativas digitais, mostramos linguagens outras sobre a morte.
Durante essa pandemia, os autores destacam que “Bolsonaro nega que estamos diante de uma crise sem precedentes e acusa governadores, mídia e cientistas de incitar a ‘histeria’.” (Oliveira & Arantes, 2020, p. 7). Os autores mencionam iniciativas locais que desenvolvem ações solidárias, desde a distribuição de material e higiene a financiamentos coletivos, e destacam o protagonismo no governo municipal no enfrentamento da pandemia. As iniciativas, como perpetuado profusamente no início da pandemia, visam sempre “achatar a curva”, metáfora que traduz em números e gráficos, os casos graves e mortes por Covid-19.
Ao politizar a pandemia, Bolsonaro incentivou a população a agir contra as políticas da própria OMS. Por outro lado, boa parte da direita já estava inclinada a fazê-lo em meados de março, principalmente quando rejeitava a imprensa tradicional e contando com notícias divulgadas pelas redes sociais, o terreno em que as fake news circulam livremente.
Sobre Manaus
Os autores apontam que: “Com aumento de mortes, Manaus passa a ter enterros noturnos e caixões empilhados em cemitério”, estampa a manchete. As primeiras fotografias e tomadas aéreas do cemitério Nossa Senhora Aparecida, o principal da capital amazonense, repercutiu em todos os veículos midiáticos brasileiros e estrangeiros. E o Portal Manaós também noticiou a primeira e a presente segunda “onda”.
Compreender a internet como uma dimensão do cotidiano, observar as narrativas digitais e as interações que as compõem é uma direção para a análise de processos psicossociais contemporâneos. Marco Antônio Alves (2017) destaca a ubiquidade da cultura digital. O autor argumenta que o aumento das conexões possibilitadas pela internet dão origem “a formas inéditas de dominação e a novos conflitos e lutas de resistência.” No âmbito do jornalismo e das ciências, é desafiador o confronto com a circulação de posicionamentos que desautorizam suas produções. Mas podemos ver ocupações nas plataformas digitais que compõem outras narrativas sobre a morte, lidas aqui como forma de resistência e solidariedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As narrativas sobre a morte que trazemos neste artigo, tanto sobre a gripe espanhola quanto sobre a Covid-19, se entrelaçam naquilo que fazem, como força narrativa. Elas expõem a fragilidade da humanidade, desvelam as desigualdades na morte, a irresponsabilidade sanitária dos governantes, as fragilidades dos serviços de saúde e a suspensão dos ritos fúnebres. As narrativas sobre a morte na gripe espanhola estão relatadas em estudos históricos, derivados de dissertações e teses. Como diagnóstico do presente, essas narrativas nos ensinam sobre a Covid-19, mas ainda estão por vir estudos sistemáticos sobre essa recente pandemia. Analisamos, portanto, as narrativas que exploram os números como forma de assinalar desigualdades, injustiças e responsabilidade política, que tornam a morte mais próxima da população negra e pobre. Nas narrativas digitais, entre a espetacularização da morte por Covid-19 das imagens dos cemitérios e a estilização nominal em memória das vítimas que lhes resgatam da impessoalidade epidemiológica, exploramos como o país tem elaborado as perdas em massa durante a pandemia.
“a morte do outro é uma lembrança da nossa própria morte.” Talvez esse seja o lado estarrecedor das pandemias. Quando são muitos a morrer, essa lembrança não pode ser suprimida.
Essa matéria possui o objetivo de divulgar o artigo publicado na Revista Psicologia & Sociedade. Autoras: Luciana Kind e Rosineide Cordeiro. Acessem o texto na íntegra=>https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822020000100403
- Fonte: Artigo Científico disponível https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822020000100403
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