sábado, outubro 5, 2024
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Sociedade e Direito – “O homem de vidro” – A privacidade na Era Digital.

Um dos possíveis recortes para se construir um trajeto histórico-evolutivo da privacidade, nem que seja de forma sucinta, como aqui pretendido, pode ser feito pela relação do homem com o desenvolvimento de novas tecnologias, o que surte efeitos desde a arquitetura das cidades até as mais variadas formas de comunicação.

Em um primeiro momento, pode-se afirmar que o coexistir do homem se deu de forma repartida, em regra, sem obstáculos a serem impostos para o outro, sem a necessidade de se resguardar dos demais olhares que lhe circundavam.

Contudo, com a transição da Idade Média para a Idade Moderna, mais especificamente na passagem do feudalismo para o capitalismo, os donos dos meios de produção, os burgueses, não mais assentiam com o compartilhamento desmedido de suas vidas, seja com os próprios burgueses, seja com os proletários.

Nessa quadra da história, pode-se afirmar que a privacidade começa a adquirir os seus primeiros contornos, muito bem relacionados ao fato de ser deixado só, de ser mantido longe dos demais por alguns períodos do dia, portanto, com um cariz individualista, estático.

“Enfim, paredes foram construídas para manter aqueles que por elas podiam pagar para se reservarem.”

O que só foi possível por uma nova forma de existência social, influenciada pelas novas tecnologias aplicadas à construção e pelas máquinas que guarneciam as indústrias e nutriam os bolsos de seus donos.

Aos trabalhadores, explorados e miseráveis, não restava outra alternativa a não ser a continuidade de compartilhamento de suas vidas com os demais, pois a relação entre privacidade e pobreza sempre tendeu a ser paradoxal.

Avançando séculos nessa caminhada e chegando na contemporaneidade, com o paulatino surgimento de novos implementos tecnológicos, em especial a maior conectividade de pessoas proporcionada pela internet e as infindáveis possibilidades de interação por meio das redes sociais, percebe-se que há um retorno da privacidade ao tempo em que todos viviam sem as paredes.

A auto exposição nas redes sociais e o capitalismo de vigilância (Shoshana Zuboff) que está a coletar toda uma gama de dados, armazenando-os para as mais diversas finalidades, desde a manipulação na engenharia decisional para se adquirir um produto no mercado de consumo ou simplesmente votar em determinado candidato até a modulação dos comportamentos no âmbito familiar, fez surgir um novo homem, aquele que Stefano Rodotà denomina de homem de vidro, posto que pode ser visto em todas as suas nuances.

“Trata-se de uma imagem translúcida, bem mais nítida do que a que o homem tinha quando vivia nos seus primeiros estágios, congregado com os demais, sem qualquer proteção ou resguardo de sua privacidade, já que, atualmente, é possível enxergar não apenas aspectos que lhe são externos, mas os internos também.”

Alguns chegam a afirmar que a privacidade não mais existe na Era Digital. Que estamos sendo vigiados, espoliados pelo capital de vigilância e o pouco que ainda nos resta está sendo entregue de forma gratuita pelas postagens nas redes sociais.

Até que ponto essa tecnologia está sendo benéfica é algo marcado pela controvérsia, mas um fato parece se manter o mesmo: a relação entre a pobreza e a privacidade continua sendo marcada pela incompatibilidade, pois a educação digital parece não ter chegado ao mesmo tempo e na mesma intensidade em que os smartphones estão chegando aos milhões de lares brasileiros.

Esses milhões parecem andar despidos pelas avenidas digitais, pois as gigantes da tecnologia, ao menos em alguns aspectos, parecem conhecer mais sobre suas vidas do que eles próprios, vide o caso narrado por Yuval Harari sobre programas animados por inteligência artificial que podem identificar a sexualidade de uma pessoa bem antes dela.

É por isso que, dentro do panóptico digital (Byung-Chul Han), a educação não deve ser apenas voltada para se instruir como utilizar a tecnologia, mas sim para compreender os seus efeitos sobre a vida individual e da coletividade, constituindo-se num imperativo para o resguardo, dentre tantos outros direitos, do direito humano à privacidade.

Enfim, para a tutela adequada da privacidade nos tempos atuais, esta não pode mais ser entendida apenas como o direito de ser deixado só, mas deve ser encarada por uma perspectiva dinâmica e ativa em que cada um necessita controlar aspectos de suas respectivas vidas perante os poderes públicos e empresas privadas.

“Numa luta contínua para que o homem de vidro volte a ser o homem de carne e osso, com parcelas de suas existências opacas para os demais.”


  • Por Marcelo Pinheiro.
  • Foto: Divulgação.

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