Para começo de conversa, importante compreender que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos e não meros objetos.
Ao longo dos anos, a criança sequer tinha consideração de autonomia. Nas antigas sociedades (grega ou romana), a criança e o adolescente sequer eram considerados suscetíveis de proteção jurídica, pois eram meros objetos de propriedade estatal ou paternal, caracterizados por um estado de imperfeição que se perdia somente com o passar do tempo, e unicamente suavizado por um dever ético-religioso de piedade.
O conceito de infância e a própria proteção das crianças só começou a ganhar corpo a partir do século XIX. Até então eram consideradas como pequenos adultos sobre os quais os pais poderiam exercer poder praticamente ilimitado. Eram encaradas como uma espécie de propriedade parental, entendimento derivado da concepção absolutista de pátrio poder proveniente do Direito Romano.
Em Roma, o Pater podia castigar corporalmente seus filhos sem qualquer limitação, modificar seu status social, dar esposa ao filho, dar sua filha em casamento (recebendo dote), divorciar seus filhos, transferi-los a outra família, dá-los em adoção, e até mesmo vendê-los. As crianças eram menos que pessoas e se aproximavam muito da categoria de objetos, de coisas.
Como se percebe, a evolução histórica de superação e reconhecimento de direito das crianças coincide com a necessidade de reconhecimento de outros grupos vulneráveis (mulheres, estrangeiros, negros, prisioneiros, deficientes, pessoas de etnias minoritárias).
Nos últimos 200 (duzentos) anos, um fato marcante foi o caso “Mary Ellen Wilson” (EUA, 1874). Ellen era uma criança (9 anos de idade) que era violentada pela mãe e não tinha qualquer convívio com o mundo externo, comunitário. Um certo dia, os vizinhos perceberam que a criança tinha o corpo muito fraco (pequeno até para uma criança de 5 anos de idade) e apresentava diversos hematomas (“trajada com roupas rasgadas e sujas e tinha uma grande cicatriz que ia do seu olho esquerdo ao queixo, fruto de um golpe de tesoura desferido por sua mãe adotiva”). Ao noticiarem os fatos, as autoridades públicas, embora existente uma norma de negligência dos pais, disseram que não poderiam atuar, pois prevaleceria a autoridade da mãe.
Foi aí que surgiu a seguinte tese desenvolvida Herny Bergh, líder do movimento de proteção dos animais e fundador da “Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais” (ASPCA): Mary Ellen é certamente um pequeno animal e se as crianças são parte do reino animal podem ser protegidas sob a égide das mesmas leis que protegem os animais contra a crueldade”.
E assim aconteceu: A mãe foi condenada pelos maus-tratos e a criança foi acolhida pela Sheltering Arms, uma entidade protetiva, e posteriormente adotada.
No Século XX, o quadro se aperfeiçoou, pois surgiu um olhar para a criança e o adolescente como uma pessoa no sentido pleno do termo, permitindo-lhe atingir direitos e liberdades de que são beneficiários como condição geral, mesmo no período de tempo durante o qual estão em processo de formação.
Na segunda metade do século XX, crianças e adolescentes deixam de ser vistos como meros sujeitos passivos, objeto de decisões de outrem (ou seu representante legal), sem qualquer capacidade para influenciarem a condução da sua vida, e passaram a ser vistos como sujeitos de direitos (pessoas dotadas de uma progressiva autonomia) no exercício de seus direitos em função da sua idade, maturidade e desenvolvimento das suas capacidades. Sim, crianças possuem “cidadania social”.
No nível internacional, a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) são instrumentos que estabelecem a criança como sujeito destinatário de direitos e proteção física e mental, cuidado especial, devendo, ainda, ser amparado por uma legislação apropriada.
Atenta ao movimento mundial de proteção, a Constituição da República (art. 227) impôs o dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
No plano infraconstitucional, fora aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), um dos diplomas legais mais avançados do mundo em matéria de proteção infantil.
Nessa toada, cumpre observar que uma simples leitura do art. 1634 do Código Civil deixa claro que as atribuições dos pais em relação aos filhos é tratada com uma série de deveres, obrigações e responsabilidades (cuidar, sustento, educar, proteger), como manifestação do princípio da parentalidade responsável.
Assim, os pais não são titulares, nem podem ser obstáculos para que crianças e adolescentes exerçam direitos. Ao contrário, Família, Estado e Sociedade possuem o DEVER (não mera faculdade) de efetivar direitos da criança e do adolescente.
Então, o Poder Público pode obrigar a vacinação?
É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações ou; (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou; (iii) seja objeto de determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico científico. (STF n. 6586 e 6587).
Especificamente quanto às crianças, é obrigatória a vacinação nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. (art. 14, §1º, do ECA – Lei n. 8069/90).
E no caso da COVID-19, a vacinação também poderá ser obrigatória?
SIM. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: d) vacinação e outras medidas profiláticas (art. 3º da Lei n. 13.979/2020).
Se a União não determinou obrigatoriedade, o Estado ou Município pode obrigar a vacinação de crianças e adolescentes?
SIM. A efetivação do direito à saúde é concorrente entre os entes, razão pela qual deve ser observada a autonomia dos entes. Art 23, I c/c 198, I da Constituição da República.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, as medidas de proteção à saúde seguem a lógica do constitucionalismo horizontal. Desse modo, qualquer dos entes podem adotar medidas sanitárias nos seus limites, independente da União. (STF: ADIs n. 6341 & 756)
Os pais podem ser obrigados a vacinarem seus filhos?
SIM. Segundo o artigo 29 do Decreto n. 78231/76, “É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória“.
Todas as crianças estão obrigadas a serem vacinadas? Existem exceções para vacinação?
Só será dispensada da vacinação obrigatória, a pessoa que apresentar Atestado Médico de contraindicação explícita da aplicação da vacina. (Decreto n. 78231/76 Art. 29. Parágrafo Único).
Mas a vacina para crianças não é de caráter experimental?
NÃO. As vacinas pediátricas não são “experimento”. Não há que se falar em cobaia ou fase de testes, uso emergencial. Isso porque, as vacinas pediátricas da Pfizer (aplicada no Brasil), Coronavac e Astrazeneca já possuem a autorização definitiva para utilização. A Janssen já é usada na Europa para crianças. Portanto, o tratamento vacinal disponível para crianças não é experimental.
Os pais podem deixar de vacinar seus filhos sob o argumento da consciência filosófica ou exercício da liberdade de consciência?
NÃO. A obrigatoriedade da vacina não caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar. STF – Tese 1103 – ARE 1267879. Logo, a escusa imotivada ou baseada em convicções filosóficas não prevalece.
Os pais podem ser multados pode deixarem de vacinar seus filhos?
SIM. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao pátrio poder, poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutela pode resultar em multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência (art. 249 do ECA).
A recusa dos pais pode configurar crime?
SIM. A recusa imotivada dos pais pode confirmar o crime de Infração de medida sanitária preventiva (Código Penal: Art. 268. – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa).
Portanto, qualquer ente público pode impor a vacinação obrigatória às crianças, pois inexiste o direito dos pais em contrariar à efetivação do direito à saúde dos filhos, pois estes são sujeitos de direitos.
MEU PITACO:
As escolas públicas podem condicionar à matrícula das crianças ao passaporte vacinal?
Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei – Ar.t 5º, da CRFB.
A Portaria n. 597/2004 do Ministério da Saúde prevê no § 2º do art. 5º a obrigatoriedade de se apresentar o cartão de vacinação com as vacinas elencadas no Plano Nacional de Imunização para matricular em creches, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e universidade. Como a vacina contra o coronavírus não está elencada no PNI, em tese, não é possível que as escolas exijam, por conta própria, o cartão de vacinação contra a Covid-19.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal (ADI n. 6586) decidiu que a União, os Estados e Municípios podem adotar medidas indiretas para determinar a vacinação compulsória, desde que haja previsão diretamente na lei ou decorra da lei.
Logo, o passaporte vacinal só poderá ser condicionante para matrícula escolar nos Estados ou Municípios em que houver lei que autorize restringir o acesso de crianças e adolescentes às escolas.
- Por Helom Nunes
- Foto: Divulgação