sexta-feira, novembro 22, 2024

Brasil – Esposas de aluguel – Conheça novos prestadores de serviço que estão gerando curiosidade no mercado

Durante a pandemia de covid-19 a multiartista indígena, Cassis Guariniçara, de 28 anos, recorreu às redes sociais para conseguir um emprego e dispersar os efeitos da depressão.

Desempregada durante a pandemia, a multiartista criou grupos no Facebook direcionados às pautas LGBTQIA+ por ser uma pessoa não-binária, o grupo passou a oferecer serviços de pintura e manutenção residencial e comercial. Com um único post, Cassis fechou uma agenda de quatro meses de trabalho, o que permitiu um “alívio” na situação financeira.

A iniciativa de Cassis foi o pontapé inicial para a criação em 2020 das “Esposas de Aluguel”, rede que reúne profissionais autônomos negros, indígenas e LGBTQIA+. Nesses dois anos de atuação, o grupo tem complementado a renda mensal de seus integrantes — 15 pessoas já passaram pela iniciativa.

Por que o grupo foi criado?

Segundo o “Diagnóstico LGBT+ na Pandemia”, realizada pelo coletivo #VoteLGBT em parceria com a agência de pesquisa Box1824, em 2021, a perda de renda foi um dos principais problemas enfrentados para essa parcela da população.

Que é o caso do artista plástico Felipe Chianca, 28. Homem gay e morador da Ocupação Ouvidor 63, no centro de São Paulo, ele não conta detalhes, mas diz que já passou por alguns episódios de homofobia em trabalhos antes de integrar a rede. Por isso, o “Esposas de Aluguel” é um caminho que “abre muitas portas”. “É um lugar de abertura para minorias”, conta.

O que a rede faz?

Os participantes do grupo oferecem serviços de manutenção residencial e comercial, seja elétrica ou hidráulica, além de obras de alvenaria, demolição e decoração em toda a Região Metropolitana de São Paulo.

Sem carteira assinada, Gabriel Sousa, 23, atualmente realiza bicos de segurança em um posto de gasolina. Como o dinheiro não é suficiente, entrou para o “Esposas de Aluguel”, que passou a responder por mais da metade de sua renda mensal. Com isso, garante a compra, por exemplo, de itens de higiene e alimentação para o filho recém-nascido. “Tenho pouquíssimas oportunidades de emprego. (A Rede) é uma forma de inclusão”, diz o jovem negro.

Por que o grupo se chama “Esposas de Aluguel”?

Cassis explica que o nome “Esposas de Aluguel” é uma provocação diante da sua percepção de que o setor de manutenção é majoritariamente dominado por homens heterossexuais.

Ao mesmo tempo em que busca se contrapor aos “maridos de aluguel”, o nome também já foi confundido ou tratado com desdém e preconceito por algumas pessoas

“Homens já me mandaram mensagem perguntando se eu me prostituo, ou se a rede é algo relacionado à prostituição. Já pensei várias vezes em mudar o nome, mas é para confrontar”, explica.

Para evitar situações de preconceito com os trabalhadores da rede, Cassis estabeleceu uma regra: ao fechar um trabalho com algum cliente, sempre contextualiza o propósito e o perfil dos profissionais.

“A pessoa contrata a marca ‘Esposas de Aluguel’, e vai um cara visto pela sociedade como ‘um corpo masculino’. Mas não é uma pessoa cisgênera (indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu) e, sim, uma pessoa trans (indivíduo que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer), ou uma pessoa não-binária (aquela que não se identifica nem com o gênero masculino, nem com o gênero feminino)”, explica.

Quem são os clientes?

A rede é acionada na base do ‘boca a boca’, tanto presencialmente quanto por meio das redes sociais. Foi por meio da indicação de um conhecido que a artista plástica Revoar Sabino, 27, chegou ao grupo. Ela que viu na contratação das “Esposas de Aluguel” uma oportunidade de se sentir segura. “Eu sou uma pessoa trans não-binária e indígena. Imagina quanto a sociedade não desumaniza a gente, né?”, diz.

Ela contratou o grupo para realizar pequenos trabalhos na casa para a que tinha acabado de se mudar, como instalar o chuveiro, prateleiras e quadros nas paredes, além de fazer ajustes na fiação elétrica.

Como calculam o custo dos serviços?

Um dos maiores desafios que Cassis enfrentou ao atender aos primeiros pedidos de serviços de manutenção foi produzir um orçamento justo, de modo que estivesse compatível com o valor cobrado no mercado e que fosse suficiente para fechar as contas no fim do mês.

No início, Cassis recorria ao pai, que é mestre de obras, e com quem aprendeu a colocar a “mão na massa”.

Eu sempre fiz orçamento à mão, com uma planta do que precisava ser feito. Aí mandava uma mensagem pra ele: “papai, quanto eu cobro?” Também mandava mensagem pro meu cunhado, e ele me dava uma média de preço de algumas coisas”, diz Cassis.

Quando a rede passou a receber mais colaboradores para dar conta de todas as demandas que recebia, o desafio cresceu. Era preciso aprender como precificar não só o próprio trabalho, mas o dos outros trabalhadores, diz.

“Eu sempre quis ser justo com as pessoas que trabalhavam comigo. Não faz sentido eu ganhar mais ou menos. Eu queria pagar R$ 150 a diária, mas acabava, às vezes, não ganhando nada ou ganhando R$ 80”, explica.

Durante esses dois anos, Cassis aprendeu a usar tabelas com preços padronizados para os serviços. Assim, a divisão do pagamento é feita de acordo com o teor do trabalho. Além disso, o orçamento inclui valor com transporte e alimentação.

Para serviços mais complicados, é possível destinar uma parcela do orçamento para a compra de alguma ferramenta, que a partir daí fica disponível para uso do coletivo.

Antes mesmo dessa reformulação, o grupo já se mobilizava para conseguir emprestado o que fosse necessário para alguma obra

Quais são os próximos passos das “Esposas de aluguel”?

Como após o mês de setembro os serviços costumam aumentar, Cassis tem recebido orientação jurídica para formalizar a iniciativa abrindo um CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) como MEI (Microempreendedor Individual).

Para a analista de negócios do Sebrae, Camila Ribeiro, ter uma formalização MEI é essencial para qualquer microempresário e, no caso de Cassis, a categoria mais indicada para formalizar os trabalhos que realiza na Rede.

“Tem gente que só contrata o serviço se for emitida uma nota fiscal”, explica. “A formalização é imprescindível porque é o que vai te dar segurança e credibilidade à frente dos clientes e à frente de parceiros”, complementa.

Como o desemprego afeta a população LGBTQIA+?

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra da População LGBTI+, realizada pela startup Todx Brasil entre 2019 e 2020, das 15.300 pessoas que responderam 48% dos participantes estavam empregados e 51% disseram não ter emprego.

Segundo Ricardo Gomes, presidente da Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil, o poder público tem buscado algumas iniciativas para inserir a comunidade LGBT+ no mercado de trabalho. Ele usa como exemplo uma experiência na cidade de São Paulo, o programa Contrata SP, realizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo. Durante uma ação pontual em junho de 2022, mês da visibilidade LGBTQIA+, a iniciativa mobilizou mais de 400 vagas no Cate (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo).

No entanto, Gomes avalia que as iniciativas ainda são poucas. “A gente precisa de mais porque, na verdade, essa questão é uma dívida histórica da sociedade com a população LGBT, que acabou ficando fora do mercado de trabalho na maioria das vezes por puro preconceito”, avalia.


  • Fonte: UOL
  • Foto: Divulgação

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