O Ministério Público Federal (MPF) lançou nesta segunda-feira (1) a campanha “Indígenas, no Plural”. A ação tem como objetivo valorizar a identidade cultural dos povos originários brasileiros, com postagens e conteúdos para redes sociais, a ação faz parte do Abril Indígena, mobilização anual que destaca os direitos dos indígenas, além de esclarecer sobre os direitos dessa população e fortalecer a diversidade sem estereótipos e preconceitos.
“A diversidade cultural dos povos indígenas é um patrimônio nacional, que pertence não só a eles, mas a todos nós. Essa diversidade faz do nosso país um país melhor e plural”, afirma a coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF, Eliana Torelly.
O Brasil ainda é o país que registra o maior número de povos em isolamento voluntário do planeta: dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informam que há cerca de 114 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal. “Há uma imensa diversidade linguística, uma variedade de formas de organização, de relação com a natureza, de produção de alimentos que pode se perder. Vários grupos já foram exterminados, várias línguas e conhecimentos já se perderam”, alerta o procurador da República Carlos Prola Júnior, que atua em Santa Catarina.
Demarcação, um direito essencial
A preservação desse patrimônio exige uma série de ações, mas uma delas é considerada essencial: a demarcação dos territórios de ocupação tradicional. “Não há possibilidade de se falar em preservação da cultura sem território, exatamente pelo forte vínculo que existe entre os povos indígenas e suas áreas de ocupação tradicional”, sustenta o procurador regional da República Felício Pontes. E não é só isso: além da cultura, a demarcação garante acesso a políticas públicas essenciais, como saúde e educação.
Embora os povos com territórios demarcados sofram ameaças constantes – principalmente aquelas relacionadas aos impactos gerados por grandes empreendimentos no entorno das TIs, como hidrelétricas, mineração, pecuária e monocultura, entre outros –, os indígenas cujas terras ainda não foram reconhecidas estão ainda mais vulneráveis.
“São mais de 300 terras não demarcadas no Brasil. Em muitos lugares, há conflitos violentos, invasões conduzidas por madeireiros e fazendeiros, por pessoas que possuem títulos que se sobrepõem à terra indígena reivindicada ou à terra indígena em estudo pela Funai, entre outras situações”, exemplifica.
O MPF pede a conclusão de processos demarcatórios no país. Levantamento da Câmara de Populações Indígenas e Povos Tradicionais do MPF (6CCR) mostra que, desde 2014, foram ajuizadas pelo menos 359 ações com esse tema. O órgão solicita a conclusão dos procedimentos com base no dispositivo constitucional que assegura a duração razoável do processo (art. 5º, inciso LXXVIII).
“Muito embora a Constituição diga que os processos precisam ser concluídos num prazo razoável, temos hoje procedimentos demarcatórios que duram cinco, dez, vinte ou até trinta anos e não chegam ao final. Nas ações, o MPF pede que Justiça determine a conclusão desses processos em até um ou dois anos, no máximo”, afirma Pontes.
Conflitos territoriais
A não demarcação dos territórios é fonte de disputas que resultam, inclusive, em vítimas fatais. A Bahia, estado com a segunda maior população indígena do Brasil (atrás apenas do Amazonas), registrou episódios de violência que levaram à morte de pelo menos oito indígenas entre 2022 e 2023. O estado tem 81 territórios reivindicados por povos originários, mas apenas dez estão demarcados, enquanto oito são reconhecidos como reservas indígenas.
De acordo com o procurador da República Ramiro Rockenbach, a violência continuará ocorrendo enquanto não se avançar na questão da demarcação, não só na Bahia, mas em todo o Brasil. “Para os povos originários, a terra é tudo. A terra não deve ser entendida apenas como um bem de produção, mas sim como o espaço em que os indígenas podem viver, se relacionar uns com os outros, com a própria natureza, e onde eles podem concretizar sua cultura em todos os aspectos”, afirma.
Fortalecimento de comunidades para proteção dos territórios e da cultura tradicional
Após a demarcação, outros desafios se apresentam. O procurador da República Ricardo Pael atua no Mato Grosso, estado que registra mais de 45 mil indígenas vivendo em territórios originários.
O número corresponde a 77% da população total de indígenas do estado, o que faz do MT a unidade da federação com o maior percentual de indígenas vivendo em TIs do Brasil. De acordo com ele, nos territórios reconhecidos, há questões relativas à revisão dos limites estabelecidos e ao impacto causado por grandes empreendimentos nas áreas. Entretanto, o procurador aponta um outro risco: a arregimentação de povos originários pelo poder econômico para atividades como arrendamento de terras, exploração ilegal de madeira e garimpo.
Para Pael, é fundamental fortalecer essas populações em seus territórios, no exercício de atividades regulares e desenvolvidas de acordo com as previsões legais, para que eles possam resistir ao assédio, proteger as terras e manter a cultura tradicional. Um exemplo de sucesso nesse sentido é o caso dos indígenas Paresi, no Mato Grosso, que arrendavam 20 mil hectares da terra indígena a particulares para produção de soja transgênica, atividade desenvolvida sem amparo legal. Após assinatura de termo de ajustamento de conduta (TAC) com o MPF em 2019, a agricultura na TI foi regularizada: o povo passou a produzir diretamente, sem a participação de terceiros, reduziu a área plantada para 10 mil hectares e deixou de plantar transgênicos, diversificando a produção para incluir, além de soja, alimentos como milho, feijão e amendoim.
Com o TAC, 100% dos ganhos da lavoura passaram a ficar com o povo indígena, contra os 20% que eles recebiam dos arrendatários, o que ampliou a renda dos Paresi apesar da redução da área plantada. O termo foi assinado também com cooperativas dos povos Manoki e Nambikwara, que cultivam áreas menores. Outro exemplo de sucesso é o do povo Suruí, em Rondônia, que produz café orgânico na terra indígena no sistema de agroecologia. “A gente percebe que muitos povos indígenas têm interesse em praticar atividades econômicas legais e por conta própria, o que contribui para impedir o garimpo, a retirada de madeira e outras atividades ilícitas no território”, afirma Ricardo Pael, que até dezembro do ano passado coordenava o Grupo de Trabalho Gestão Territorial e Autossustentabilidade da 6CCR, voltado para tratar de temas relacionados à geração de renda em territórios tradicionais.
Educação escolar indígena e não indígena: caminhos para a valorização da cultura
A identidade cultural dos povos indígenas pode ser fortalecida também por meio de melhorias na educação oferecida a essas populações, desde que ela seja de fato multicultural e adequada a cada grupo ou etnia. O país conta com 3.626 escolas classificadas na categoria educação indígena, conforme dados do Censo Escolar 2023, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Mais de 300 mil estudantes estão matriculados nessas escolas.
“Claro que existe uma variedade de contextos e situações, mas, em geral, não há uma educação exatamente intercultural nem diferenciada e, muitas vezes, nem com possibilidade efetiva de preservação da língua. Geralmente, as escolas indígenas são escolas semelhantes às escolas não indígenas, com a peculiaridade de que elas têm uma estrutura um pouco mais precária”, aponta o procurador Carlos Humberto Prola Júnior, que integra o Grupo de Trabalho Educação Indígena da 6CCR.
De acordo com ele, o fortalecimento da educação escolar indígena passa pelo respeito às características e peculiaridades de cada povo ou etnia; elaboração de material didático específico; garantia de alimentação tradicional nas escolas e de estruturas físicas adequadas às necessidades de aprendizado de cada povo; formação de professores indígenas e contratação de docentes em caráter efetivo. “Hoje, a maioria dos professores indígenas tem contrato temporário, o que contribui para a precarização do ensino”, afirma.
O procurador lembra que em 2017, após a realização de evento sobre o tema e atuação do MPF, o Estado de Santa Catarina realizou o primeiro concurso para contratação de professor indígena. No entendimento do MPF, o concurso público específico atende às normas constitucionais e legais que determinam ao poder público proteger a cultura dessas populações, seus costumes, línguas e tradições, bem como ajuda a promover uma educação diferenciada, com a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Outros estados já contam com cargo efetivo para professor indígena.
Para garantir aos estudantes que a alimentação oferecida nas escolas indígenas esteja de acordo com a cultura de cada local e respeite as tradições de povos e etnias, o MPF atua na coordenação da Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil. Por meio da iniciativa, alunos das escolas indígenas passaram a ter na merenda itens como pirarucu, farinha de mandioca, polpa de açaí, cupuaçu e outros alimentos tradicionais, produzidos pelas próprias famílias.
Isso valoriza a cultura, os conhecimentos e sistemas de produção tradicionais, além de gerar renda às famílias que vivem nos territórios. Hoje a Catrapovos está presente em 15 estados (Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Acre, Rondônia, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte e Goiás), e em implantação em cinco estados.
A inserção do assunto nas escolas não indígenas a partir de uma abordagem fora do tradicional também pode ser uma estratégia para derrubar estereótipos associados aos povos originários, disseminar conhecimento e fortalecer essas populações.
O procurador da República Ricardo Pael lembra que, após recomendação do MPF expedida em 2019 às Secretarias Estadual e Municipais no Mato Grosso, as escolas públicas passaram a tratar aspectos da história e cultura indígena dos grupos étnicos presentes no próprio município ou em cada região. “Em vez de falar de índio de forma genérica e abstrata, as escolas passaram a falar sobre os povos de cada local, sobre aqueles indígenas com quem as pessoas encontram na rua”, explica.
As atividades realizadas nas escolas contaram com a participação dos indígenas, numa iniciativa que buscou superar os preconceitos por meio da informação. “Foi um trabalho longo, mas com resultados muito interessantes”, relembra Pael, citando o exemplo de um menino que, ao final de uma dinâmica, perguntou o que precisava fazer para se tornar um Boe-Bororo (etnia presente na região de Cuiabá).
A campanha “Indígenas, no Plural” foi elaborada pela agência Radiola, sob a coordenação da Câmara de Populações Indígenas e Povos Tradicionais – 6ª Câmara de Coordenação e Revisão e da Secretaria de Comunicação Social do MPF. A ação de comunicação busca reforçar o papel dos povos originários como protagonistas da própria história, relatando suas vivências, experiências e perspectivas nas redes sociais do MPF. A identidade visual utiliza colagens que remetem à cultura indígena e conta com uma paleta de cores inspirada em elementos da fauna e da flora brasileiras, a exemplo do urucum, do jenipapo, do açafrão e da arara.
Ao longo do mês, serão compartilhados conteúdos educativos que exploram a valorização da identidade cultural dos povos originários. A iniciativa também esclarece sobre os direitos dos povos indígenas e destaca o trabalho do Ministério Público Federal como defensor dessas populações, atribuição prevista na Constituição Federal de 1988. Esse trabalho será apresentado por meio de uma exposição no Memorial do MPF que será lançada no dia 18 de abril.
Fonte: Ministério Público Federal – MPF
“Cerca de 4 mil índios participam da Semana dos Povos Indígenas no Pará / Foto: Thiago Gomes/Agência Pará” by Brasil de Fato is licensed under CC BY-NC-SA 2.0.
Leia mais: 60 anos pós ditadura: PFDC relembra a necessidade de responsabilização pelos crimes cometidos