Por Kátia Maria Lima de Menezes
Doutora em Saúde Pública e Pesquisadora do ILMD – Fiocruz na Amazônia
O dia 19 de abril é marcado no calendário brasileiro como o “Dia do Índio”, mas, longe de ser uma data de celebração, revela-se um momento de reflexão sobre séculos de violência e omissão. Enquanto o país simbolicamente homenageia os povos originários, na prática, seus direitos continuam sendo negligenciados, suas lideranças são assassinadas e suas terras, invadidas. A história do Brasil é marcada por um paradoxo: enquanto a Constituição de 1988 garantiu direitos fundamentais aos povos originários, na prática, o Estado continua falhando em cumprir seu papel. Como pesquisadora em saúde pública, testemunhei de perto como políticas governamentais podem salvar ou destruir vidas. Nos últimos anos, esse contraste ficou ainda mais evidente: de um lado, o projeto de extermínio do governo Bolsonaro; de outro, os frágeis avanços do governo Lula, ainda insuficientes para reparar séculos de violência.
O governo Bolsonaro marcou um período de graves retrocessos nas políticas indígenas, com ações sistemáticas que violaram direitos constitucionais e agravaram a vulnerabilidade dos povos originários. Bolsonaro não apenas negligenciou esses povos, mas promoveu uma ofensiva sistemática contra suas existências, paralisando os processos de demarcação de terras e incentivando invasões. Através do Marco Temporal, tentou impor uma tese que reescreveria a história, ignorando expulsões e violências anteriores a 1988. O governo permitiu, ainda, a invasão das terras indígenas dos Yanomami o que gerou uma crise sanitária sem precedentes.
O governo Bolsonaro negligenciou a saúde, enfraquecendo a SESAI, através do corte de verbas e a nomeação de gestores sem experiência, resultando em mortes evitáveis por malária e COVID-19. Os números demonstram a negligência com a saúde desses povos: 570 crianças Yanomami mortas em quatro anos, 20 mil casos de malária em 2022, e um aumento recorde de invasões e assassinatos. Não foi incompetência – foi projeto.
O Governo Lula: Passos Curtos em um Longo Caminho
A eleição do Lula, atual presidente, gerou expectativas de mudanças efetivas nesse processo de massacre e desmontes. Avaliamos que algumas medidas positivas foram adotadas, como a homologação de terras indígenas em 2023 e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sônia Guajajara. Operações de fiscalização expulsaram garimpeiros do território Yanomami, e o STF rejeitou o Marco Temporal, garantindo maior segurança jurídica às demarcações.
Avaliamos que o Governo Lula tem avançado, mas de forma lenta, frustrando as expectativas do movimento indígena. A mudança de governo trouxe esperança, mas a realidade ainda está longe do ideal. Os avanços ainda são insuficientes. O ritmo das demarcações continua lento, o Congresso Nacional segue dominado por uma bancada ruralista hostil aos direitos indígenas, e o orçamento para políticas indigenistas ainda é limitado. Conflitos e assassinatos, como o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips, mostram que a violência persiste.
Portanto, os desafios persistem. A verdade é que o Brasil ainda não enfrentou sua dívida histórica com os povos originários. Demarcar terras é essencial, mas não basta. É preciso combater de forma eficaz o garimpo ilegal, garantir recursos para a proteção dos territórios e enfrentar a bancada ruralista que insiste em negar direitos constitucionais. Enquanto o Estado não assumir sua responsabilidade, a luta indígena seguirá sendo, como sempre foi, uma resistência pela sobrevivência. E essa é uma batalha que diz respeito não apenas aos povos originários, mas a todos nós, que deveríamos enxergar neles não um obstáculo ao “progresso”, mas guardiões de um patrimônio socioambiental insubstituível.
Confira também o documentário ‘Saúde Indígena em Tempos de Pandemia’:
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