sábado, outubro 5, 2024

Artigo de Opinião – O drama da epidemia do covid-19 no Brasil: Lições, desafios e perspectivas por Jesem Orellana.

Inicialmente, gostaria de esclarecer que este texto tem como finalidade expor meu
ponto de vista, enquanto Epidemiologista do ILMD (FIOCRUZ), acerca da EPIDEMIA da COVID19 no Brasil. Sendo assim, julgo oportuno a circulação deste artigo de opinião, que me parece útil ao necessário exercício da dúvida ou do contraditório na ciência e tomadas de decisão.

Muito tem se falado sobre opiniões exageradas e/ou que transmitem certo desleixo
acerca da Pandemia do novo Coronavírus. O Presidente Bolsonaro, por exemplo, tem
minimizado diariamente a dimensão da crise, muitas vezes em desacordo com a fala do Ministro da Saúde Mandetta, gerando incertezas e a profusão de diferentes e muitas vezes antagônicas respostas diante da epidemia, algo absolutamente evitável e desnecessário.

Outros tem proposto modelos matemáticos que mais se assemelham a efeitos de cataclismas sobre a humanidade do que aos de uma Epidemia com letalidade certamente inferior à de doenças como a MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio – em torno de 39%) ou ebola (em torno de 60%).

Diversos especialistas, como renomados virologistas, cientistas sociais e epidemiologistas têm nos alertado de que esta não está sendo a primeira Pandemia desencadeada por um vírus de transmissão respiratória e, que, muito menos será a última. Em nosso caso, cabe ressaltar que o Governo Brasileiro e a quase totalidade dos governos estaduais/municipais não se esforçaram de forma oportuna para o enfrentamento da Epidemia no Brasil. O que temos visto até aqui é a inexistência de uma liderança nacional agregadora e eficiente para a condução da crise sanitária em vigência.

Ao contrário, o que temos visto é um carnaval de medidas e ações estapafúrdias, em
alguns casos. Se as autoridades estivessem realmente preocupadas com o problema, teriam começado a alocar recursos precocemente (OPORTUNIDADE) para a saúde/vigilância/laboratórios, criado mecanismos institucionais e de gestão, em caráter emergencial, para facilitar a expansão e a qualificação da rede de atenção, em especial das vigilâncias e do número de trabalhadores de saúde, para reforçar fluxos e protocolos já conhecidos para o atendimento de doenças infecciosas de alta transmissibilidade em unidades de saúde.

Outra medida que poderia ter amenizado os efeitos desta Pandemia, seria a não
aprovação da VIRULENTA E ASSASSINA PEC-95 (teto dos gastos públicos), que resultou em cortes avassaladores do orçamento da Ciência & ecnologia/Inovação no Brasil e no corte de milhares de bolsas para mestrado e doutorado na Pós-Graduação. Aliás, algo parecido com o que Donald Trump fez recentemente nos EUA, cortando verbas com fins socias e do Centro de Controle de Doenças (CDC), o que também impactou nas bolsas de pesquisa e ajudou no aumento de surtos de doenças infectocontagiosas como o Sarampo, por exemplo.

A mais recente ameaça à saúde pública brasileira é a homologação, em plena Pandemia, da Agência Para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS). Ela precariza, mais ainda, o Sistema Único de Saúde (SUS), como as relações de trabalho entre o Estado e os profissionais de saúde.

Em suma, o que temos cansado de ver ao longo dos últimos anos é um crescente desinvestimento em saúde, cortes orçamentários e o sepultamento de programas estratégicos como o Mais Médicos para o Brasil, em plena PANDEMIA de Coronavírus. Ademais, temos assistido a pouquíssimo ou nulo investimento na qualificação da estrutura de vigilância, em especial da configuração/multiplicação de “equipes de resposta rápida” para emergências sanitárias.

No nível nacional, por exemplo, o Centro de Operações de Emergência – Coronavírus
só foi criado no final de janeiro e o Comitê de especialistas do Ministério da Saúde, em 28 de fevereiro, sendo que sua primeira reunião só ocorreu em 5 de março de 2020.

Definitivamente, não há como bater palmas para gestores tendenciados a
olharem/investirem na crescente assistência médico-hospitalar, a mesma que tem consumido boa parte das escassas verbas da saúde e que deveria estar sendo direcionada à pesquisa aplicada e à prevenção e controle das principais mazelas que atormentam a saúde da população brasileira, incluindo ações ESTRATÉGICAS de vigilância de doenças infecciosas emergentes.

A propósito, já passou da hora de incluirmos em nosso rol de preocupações prioritárias o potencial destrutivo de vírus RNA com imprevisível configuração de novos e desconhecidos padrões genômicos, como parece ser o caso do SARS-COV-2.

Muito tem se falado no penoso caso da Itália, surpreendida pela epidemia e
flagrantemente despreparada para enfrentar o problema. Não por acaso, muitos trabalhadores de saúde adoeceram e/ou morreram LUTANDO quase que às cegas, pois não estavam preparados para um vírus com alto poder de disseminação, dentro e fora dos hospitais.

No Brasil e na maioria dos outros países, não está sendo tão diferente, pois as medidas desesperadas que levam a quase paralisação da atividade econômica, do sistema de ensino e outros setores essenciais da sociedade, parecem mais mecanismos para recuperar o tempo perdido pelas autoridades sanitárias do que realmente um conjunto de ações pensadas e oportunamente implementadas.

Será que a OMS e a imprensa não deixaram mais do que claro que no dia 31 de janeirode 2020 que a China já tinha mais de 10 mil casos de COVID-19 (provavelmente havia muito mais) e que muitíssimo provavelmente a Pandemia já estava mais do que desenhada?

Oportunidade (se antecipar ao problema ou agir precocemente) é tudo em momentos como
este e esta parece ser a parte que estamos demorando a entender e a aceitar, ao dizer que
nossos governos estão fazendo tudo que podem. É preciso deixar claro que grande parte da mobilização nacional só começou a ocorrer com o pânico que ressoava da Itália e com os primeiros 24 casos notificados laboratorialmente em SP na primeira semana de março, mais ou menos no mesmo período do crash global do mercado de ações em nove de março.

A partir de então o quantitativo de gente treinada começou a aumentar, em especial de
técnicos habilitados para realizar exames específicos para detecção de Coronavírus no âmbito do SUS, até então claramente limitado e aquém da demanda de um país com mais de 220 milhões de habitantes. Começaram a pensar em alocar recursos para a saúde, a orientar a população e que a vigilância ativa poderia ser um recurso útil em tempos de Pandemia.

Quem não lembra da falta de vigilância para possíveis casos de infectados por CORONAVÍRUS nos grandes aeroportos brasileiros até o fim de fevereiro, e até mais recentemente nos menores aeroportos, em plena transmissão comunitária.

Precisamos aceitar e, acima de tudo, aprender com a DURA LIÇÃO de não termos agido oportuna e apropriadamente nas primeiras semanas da epidemia na China.

A todo momento o Governo Federal e demais autoridades têm se esforçado em dizer à
população que não estão escondendo informação/dados da sociedade. Não deixa de ser
verdade, já que os brasileiros jamais conhecerão um número um pouco mais realista das pessoas que foram infectadas e que adoeceram por COVID-19 no início da epidemia.

Isto éparticularmente válido, para as grandes cidades e seus casos assintomáticos (contatos dos casos sintomáticos) ou com sintomas limitados ao curso clínico de uma gripe comum (em geral, sem dificuldade respiratória ou comprometimento importante da função pulmonar) e que não  procuram o serviço, seja por adequada cautela de não ir desnecessariamente ao serviço de saúde ou simplesmente por estar descrente da agilidade e resolutividade dos serviços de saúde.

Não há dúvida que precisamos “achatar a curva”. Mas, é primordial que esse esforço
seja implementado de forma racional e oportuna, evitando a paralisação de cidades sem confirmação laboratorial de casos há semanas. O caso da Coreia do sul parece exemplificar bem essa situação, já que oportunizaram o rastreamento em massa (estratégia conhecida como Drive-Thru) de doentes e seu respectivo e imediato confinamento, complementado com medidas de acompanhamento. Paira a dúvida se a duvidosa estratégia de paralisação das cidades está sendo usada como plataforma política de prefeitos e vereadores para o pleito de outubro deste ano ou se é reflexo do inegável despreparo da sociedade para com esta mazela que mais aterroriza por suas consequências econômicas e sociais do que por sua letalidade.

Não parece haver dúvidas de que a falta de estrutura laboratorial e de testes “rápidos”
disponíveis no curto prazo obrigará o Brasil a usar esses recursos de forma racionada e
priorizando quem está na dianteira da batalha (trabalhadores de saúde) e os indivíduos mais comprometidos do ponto de vista clínico. Ainda assim, não é demais lembrar que o Governo Federal já poderia ter adiantado o processo de descentralização e expansão da capacidade laboratorial para a realização de testes moleculares meses atrás ou ainda ter se antecipado e comprado testes com um pouco mais de agilidade.

É razoável aceitar que em plena disseminação e crescimento do problema, tendendo
para um comportamento exponencial (crescimento rápido e muitas vezes assustador de um
evento), deixa de fazer sentido testar todos os casos, devendo, portanto, prevalecer o critério clínico-epidemiológico. Mas, resta saber por que tantos municípios que sequer entraram na fase de transmissão local estão limitando as testagens e sendo extremamente lentos na devolução das respostas à população? Foram pegos desprevenidos, muito provavelmente.

Se for verdade que a grande maioria das pessoas infectadas pelo SARS-COV-2 em outros
países/regiões (ainda é cedo para falarmos disso no Brasil) não evolui para quadros graves ou sequer apresenta sintomas e assumindo que essa grande parcela da população não deve ir aos serviços de saúde, como teremos uma ideia um pouco mais aproximada do real número de casos existentes ou novos no Brasil? Essas informações não seriam essenciais para à implementação de estratégias de enfrentamento ao longo da Epidemia, a qual pode passar de seis meses?

O caso é que o Ministério da Saúde encomendou apenas 30 mil kits diagnósticos para Coronavírus à FIOCRUZ no final de fevereiro, cuja entrega só foi concluída no dia 20 de março. Não é demais lembrar que a capacidade de produção semanal da FIOCRUZ era de 25 a 30 mil ou de aproximadamente 100 mil kits até o dia 11 de março, quando o Brasil tinha menos de 50 casos confirmados.

O equívoco ficou evidente quando o Ministério da Saúde mudou radicalmente de
posição e, por estes dias, solicitou a aquisição de 22,9 milhões testes.

Em relação a cura da COVID-19, temos que aceitar que nas próximas semanas não haverá vacinas ou medicação relativamente eficiente, tal como está o TAMIFLU (fosfato de oseltamivir) para a luta contra os vírus da Influenza A e B.

Temos sim é que ser cautelosos com o uso de medicações como a Cloroquina e a Hidroxicloroquina e pautarmos futuras decisões em princípios sólidos de eficácia/segurança e, principalmente, efetividade dessas drogas, mesmo em pacientes mais graves.

Novamente, não podemos deixar de pontuar que houve certa demora por parte da ANVISA em recolher a cloroquina e restringir a sua venda indiscriminada. A epidemia terminou na China? Não. O que terminou foi o seu primeiro ciclo, pois continua importando casos de outras regiões do planeta e, vez ou outra, há relatos de mais transmissão local.

Por isso mesmo, estão sendo mais rigorosos com o controle de estrangeiros no país. Talvez o que estejamos vendo agora por lá seja o declínio sustentado de casos novos (pessoas até então não doentes e que adoecem por COVID-19), especialmente a partir do dia 2 de março. O que os dados parecem mostrar (não necessariamente demonstram a dinâmica local e real do problema), é o efetivo controle da epidemia e não o seu fim, pois a qualquer momento novos ciclos epidêmicos podem ser ativados, por falha nas estratégias de vigilância e controle.

Enfim, parece que o maior desafio, no momento, não é exatamente o SARS-COV-2 e sim
a mensagem que ele está transmitindo sobre as incontornáveis fraturas do sistema econômico vigente e da urgente necessidade de uma nova postura por parte de políticos, cientistas e de toda a sociedade diante da problemática. Mas, longe de radicalismos como confinamentos indefinidos e injustificados no nível local, os quais, certamente, custarão muito caro em curto/médio/longo prazo, como o vertiginoso aumento do desemprego, da violência urbana e no campo, bem como do aumento de transtornos mentais, para dar alguns exemplos.

A trincheira, portanto, dever ser instalada com mais vigor fora dos hospitais, ponto terminal da crise e onde pouco se pode fazer.

Precisamos ir atrás dos casos na comunidade (selecionando as áreas prioritárias), fazer diagnóstico clínico-epidemiológico na ausência de testes diagnósticos e encontrar formas criativas de enfrentar o problema, como os atendimentos via Drive-Thru na Coreia do Sul, reforçando a crítica necessidade do isolamento social dos casos confirmados e de seus contatos. Ou mudamos e reconhecemos nossos erros ou a ordem vigente ruirá de forma traumática, como tantas outras ao longo dos últimos milênios.

Jesem Orellana
Epidemiologista do ILMD/FIOCRUZ


  • Publicado pela Redação Portal Manaós.
  • Imagem: Divulgação.

Fique ligado em nossas redes

Artigos Relacionados

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Publicidade

Programas

Últimas Notícias